As Bactérias Malhadoras – microbioma, maratona e bicicletas # 30
Haverá relação entre prática de exercícios físicos e microbioma intestinal? Será diferente a composição nos atletas de alto desempenho comparado com simples esportistas e sedentários? São questões fascinantes e objeto de investigação acadêmica recente, mas ganhando interesse cada vez maior.
Para se entender sua importância vale assistir a exposição da professora Suzan Lynch, do Centro de Medicina Integrativa da Divisão de Gastroenterologia da Universidade da Califórnia São Francisco, gravada dia 9 de novembro de 2019. Segundo Suzan, o estudo do microbioma humano é a nova fronteira da ciência. Embora ainda não existam estudos estatísticos randomizados duplo cego robustos, que assegurem cientificamente a associação e a direção da causalidade com diversas doenças humanas, as indicações da associação são fortes. E as evidências com base em estudos de grande número de populações é questão de tempo.
O microbioma das crianças com asma, afirma Suzan por exemplo, é diferente daquele de crianças sem asma. O mesmo acontece com crianças obesas. Por isso, ela afirma que o microbioma educa nosso sistema imunológico; é preditor de doenças infantis, como asma e obesidade; está associado a doenças crônicas em adultos e ainda há muito por ser desvendado.
O microbioma se desenvolve muito cedo na vida e a população de micróbios intestinais molda o desenvolvimento do sistema imunológico e pode ser chave no surgimento de algumas doenças, como a esclerose múltipla. Esse fato abre perspectivas para tratamentos individualizados, que busquem ajustes na composição do microbioma.
Nesta exposição, no entanto, a Prof. Suzan não discorreu sobre possíveis associações entre o microbioma intestinal e o desempenho de atletas. Mas é disso que vamos tratar agora, com base em matéria publicada pela prestigiosa revista Nature com o título “Os micróbios afetam o desempenho de atletas?”
Estudos sobre a colônia de microrganismos que habitam o intestino, mesmo que ainda escassos, parecem indicar que existe uma associação entre desempenho atlético e microbioma. O pioneiro dessa associação foi o pesquisador Jonatham Scheiman, durante seu pós-doutorado na Harvard Medical School. Pouco antes da maratona de Boston de 2015, ele coletou amostras de fezes de maratonistas e não maratonistas. Quatro anos mais tarde, concluiu o artigo afirmando a associação entre a composição das colônias de microrganismos que habitam o intestino e desempenho atlético.
O grande desafio que ele enfrentou foi o de identificar quais micróbios e pelo que cada um era responsável. Ele somente conseguiu estabelecer a associação porque os avanços da tecnologia vêm facilitando a identificação dos genes microbianos e suas funções.
Para se ter uma ideia da dificuldade em se estabelecer essa associação, basta lembrar que o bioma intestinal sofre as influências de muitos fatores, desde a forma do parto, o uso de antibióticos, consumo de álcool e tabaco, níveis de estresse, faixa etária (idade) e, principalmente, o padrão alimentar. Mas muito pouco se conhecia sobre como a atividade física poderia afetar o microbioma e vice-versa.
Vários estudos apontam que pessoas que estão em boa forma física tem maior diversidade de bactérias nos intestinos. Um parâmetro importante foi a capacidade cardiorrespiratória. Esta estava mais relacionada à diversidade bacteriana do que o sexo, a idade, a massa corporal ou mesmo a dieta. Por isso, a hipótese de que o microbioma intestinal possa estar associado ao desempenho dos atletas é perfeitamente plausível, embora não se possa ainda ter as evidências que a confirmem.
Para entender um pouco esta relação entre “alhos e bugalhos” podemos lembrar que entre as funções das bactérias intestinais está a decomposição fermentativa de carboidratos complexos da dieta em ácidos graxos de cadeia curta (AGCCs), butiratos e acetatos e esses metabólitos bacterianos podem atuar nas fontes de energia das células musculares e ser relevantes na constituição de boa forma física.
Outro estudo, realizado com um grande conjunto de ciclistas profissionais e amadores observou que os maiores “pedaladores” tinham maior concentração do gênero bacteriano intestinal Prevotella. Esse gênero está associado ao metabolismo de carboidratos e cadeias de aminoácidos, e pela mesma razão acima, entram na cadeia de energia da célula.
Mas o grande achado de Scheiman, no seu já mencionado estudo com maratonistas, foi o alto nível de concentração de bactérias do gênero Veillonella (bactéria muito hábil na lactato fermentação) ao final da maratona. Concluiu-se que esportistas de alto desempenho têm concentrações de Prevotella e de Veillonella maiores do que os sedentários.
Essa descoberta pode ter implicações no tratamento do diabetes tipo 2, na qual a prática de exercícios físicos para quem já está acometido da doença tem resultados expressivos, assim como para que tem elevado risco de vir a desenvolvê-la.
Observou-se, no entanto, que em um terço das pessoas com alto risco de desenvolver diabetes o exercício físico não produz os resultados esperados. Deles se diz que têm “resistência ao exercício”. E onde foram encontrar uma correlação? Nas bactérias intestinais! Os pacientes que se beneficiam do exercício têm altas concentrações dos metabólitos butirato e acetato, produzidos pelo já mencionado gênero Veillonella; já nos pacientes resistentes ao exercício as concentrações desta bactéria eram muito inferiores.
Para pacientes em consultório estes estudos representam uma esperança. Mas é preciso investir mais em pesquisas e desenvolvimento na linha do microbioma intestinal. Imaginemos que um dia podemos prescrever uma cápsula ou um tipo de iogurte com bactérias estimulantes da atividade física.
Mas enquanto evidências mais robustas e resultados clínicos ainda não cheguem com este tipo de terapia promissora, vá logo cuidar de seu microbioma intestinal com alimentos não inflamatórios (alimentação baseada em plantas é a chave, sempre!) e siga se movimentando.
Os médicos, quando se formam, fazem o juramento de Hipócrates, que diz entre seus preceitos “nunca fazer o mal (primum non nocere) e se possível fazer o bem”. Alimentação saudável e baseada em plantas não faz mal e tem muita possibilidade fazer o bem, enquadrando-se perfeitamente nas condições do juramento de Hipócrates.
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Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=XCaTQzjX2rQ
Nature 592, 31mar2021 https://doi.org/10.1038/d41586-021-00821-6