Mudanças de hábitos – Uma difícil, mas necessária tarefa # 21
“Quer mudar maus hábitos? Tente a medicina de estilo de vida” é o título de reportagem da jornalista Mariza Tavares, no G1, de 19/07/2020.
“Abordagem terapêutica se baseia em seis pilares: alimentação, exercício, sono, manejo do estresse, relacionamentos saudáveis e controle de drogas” é o que recomenda a presidente do Colégio Brasileiro de Medicina do Estilo de Vida e coordenadora de pós-graduação dessa disciplina, no Hospital Albert Einstein, Sley Tanigawa Guimarães. Será também preciso envolver a ciência comportamental para alcançar os objetivos.
O problema reportado é de grande importância. Todos conhecemos pessoas que mantém certos hábitos, mesmo cientes de seus prováveis malefícios, e que gostariam com profundo convencimento se livrar deles, mas não conseguem. Pensemos nos hábitos alimentares – com é difícil mudá-los. Imagine então o esforço necessário para se livrar do alcoolismo ou tabagismo, entre tantos outros chamados de vícios. Nesse ponto, as ciências da saúde têm um grande desafio - como ajudar essas pessoas a mudarem seus hábitos, já que não há ainda medicações eficazes que possam ajudar. Nem estão à vista no horizonte alcançável.
Segundo a Dra. Sley, é preciso fazer mudanças no estilo de vida e sustentá-las, o que é um desafio muito grande. Por isso recomenda começar com objetivos modestos, que não sejam difíceis demais de alcançar, e mudar devagar, fazer alterações na margem, verificar o que já se alcançou e os benefícios que já nos trouxe. Particularmente difícil é transformar hábitos alimentares, pois “comer envolve um lado afetivo, de memória”, que vem desde criança ou até mesmo da gestação. Esse ponto de vista também é apresentado pelo Dr. Alberto Gonzalez nos seus cursos.
Para entendermos por que precisamos mudar os padrões alimentares devemos regressar ao passado e entender como esses padrões foram sendo alterados no tempo. A luta pela sobrevivência foi e grande medida a luta diária para conseguir alimento. Malthus, no começo do século retrasado, tinha uma visão pessimista quanto à capacidade de o planeta alimentar toda a população. Verdade, nosso destino não foi tão pessimista quanto Malthus antevia. Também é verdade que as sociedades passaram por várias transições ou mudanças nos padrões alimentares. A partir de meados do passado, os aumentos da produtividade agrícola que conduziram à revolução verde permitiram a expansão da produção. A fome existente no mundo deixou de ser devida à escassez de produtos e passou a depender das políticas públicas. Um avanço, pelo menos diante dos problemas da fome daquela época.
Grandes mudanças nos meios de transporte também tiveram papel importante na transição nutricional, ao permitirem acesso, em todas as partes do mundo, a uma maior variedade de alimentos. Pouco mais de meio século atrás, a distância média percorrida pelos alimentos servidos à mesa não passava de 200 km. Hoje, viajam em média 2.000 km. Os alimentos já não chegam frescos às nossas mesas de refeição. A mudança aumentou a disponibilidade de alimentos e enriqueceu a variedade do que consumimos. Mas perdemos em frescor, portanto em qualidade. Perdemos em qualidade também porque para incrementar a produtividade agrícola passou-se a utilizar extensivamente fertilizantes químicos, defensivos agrícolas, fungicidas e pesticidas. Que se incorporam aos produtos. Todos nocivos à saúde humana.
As sociedades ganharam em capacidade de produção alimentar às custas da qualidade.
Poucas décadas depois, assistimos outra transição alimentar, a do fast food, conveniente, rápida, sempre pronta nas prateleiras, mas normalmente mais calórica e menos nutritiva. Essa transição, junto com o aumento do sedentarismo, levou populações de vários países do mundo às atuais epidemias de obesidade. E com elas o aumento da prevalência de doenças crônicas – diabetes, pressão alta, problemas cardiocirculatórios, processos inflamatórios crônicos, problemas osteomusculares, entre tantas outras.
Precisa-se ainda destacar que nesses anos também aumentou muito o consumo de proteína animal, o que foi possível pelas novas formas de criação e pela seleção genética de variedades mais produtivas para um objetivo predeterminado – mais filé, mais leite, mais ovos etc. etc. Assim como na produção agrícola, a criação passou a utilizar intensamente os antibióticos, que se incorporam à carne e ao leite e são transmitidos aos organismos de quem os consome.
É chegado o momento de questionarmos os efeitos em nossos organismos dessa sequência de mudanças. Não há como não associar os aumentos do sobrepeso, obesidade, doenças crônicas, câncer, em ascensão em quase todos os países do mundo a essa segunda transição alimentar, a migração para a era do fast-food, das bebidas açucaradas, dos alimentos ultra processados. Estamos sacrificando nossa saúde pela conveniência dessas formas alimentares.
É preciso destacar outra consequência das mudanças nas formas de produção agrícola e criação de animais: seu impacto ambiental. Viemos sob a ameaça bem concreta do aquecimento global, provocado pela emissão dos gases do chamado efeito estufa, como o gás carbônico e o metano. A produção agrícola e a criação respondem por quase um terço de todas as emissões de gases de efeito estufa. A produção de proteína animal demanda recursos naturais em intensidade quase dez vezes maior do que a produção agrícola.
As metas acordadas internacionalmente para a conter as emissões, equivocadamente combatidas por Trump, não serão atingidas sem uma profunda reestruturação da produção e consumo de alimentos. Persistir nas formas atuais pode aquecer o planeta de forma a inviabilizar a vida da maior parte das espécies, inclusive a humana. Talvez essa até antes das outras.
Pelos efeitos do excesso de proteína animal no organismo e por seus impactos ambientais, seria recomendável que as sociedades reduzissem o consumo de proteína animal e migrassem para uma alimentação mais baseada em plantas. Os motivos para a migração seriam a saúde das pessoas e a saúde do planeta. A ênfase, dizem a Dra. Shiley e o Dr. Alberto, “está numa dieta de vegetais, com frutas, legumes e verduras, diminuindo o volume de proteína animal e processados”.
Há um número, ainda pequeno, mas crescente, de iniciativas nessa linha, tanto acadêmicas quanto em estabelecimentos que servem refeições. Vale transcrever parte do texto da jornalista Mariza Tavares:
“Centro de Longevidade de Stanford lançou a Iniciativa Stanford de Medicina de Estilo de Vida, cujo objetivo é divulgar práticas nessa área através da criação de conteúdos, plataformas de educação e muita pesquisa para dar lastro às ações. ... [À] frente dessa empreitada .... [está] a médica e chef Michelle Hauser, formada pela prestigiosa escola de gastronomia Le Cordon Bleu. Em 2017, a doutora Hauser criou uma disciplina eletiva de medicina culinária para os alunos da faculdade de medicina que tem fila de espera. As aulas aliam informações sobre nutrição com tutoriais sobre como criar pratos saborosos e saudáveis – e, claro, os estudantes põem a mão na massa e cozinham. O resultado? Além de melhorarem suas próprias dietas, os futuros doutores tornam-se capazes de aconselhar os pacientes a como se alimentar melhor sem que isso seja sinônimo de comida sem gosto e sem graça.”